pequena o meu pai adorava brincar comigo, eu mesmo assim não queria sentir a presença dele, quando cresci, sem perceber porque comecei a ter medo, medo de o ver, medo de ouvir a sua voz – o meu pai porque?
Perguntei eu tantas e tantas vezes, mas era assim e nada podia fazer para evitar o que sentia. O olhar dele transtornava o meu dia, deixava de ser eu, mas porque meu pai? Porque tudo aconteceu sem que nada fosse possível fazer para melhorar a nossa relação, o nosso dia a dia..
Meu pai, lembras quando fui à escola pela primeira vez?
Sabes pai tu estavas escondido, escondido de mim, do mundo, porque hoje sei que também tinhas medo, medo de me perder, medo que eu sofresse, um medo que fugia do teu controlo.
Mas, meu pai, nós vamos fazendo o que a vida nos pede, hoje sei que o nosso caminho está ligado connosco. Meu pai agora sei que o que fui e o que foste, é tudo tão igual.
Hoje sei que sofreste como eu sofri, hoje sei que os nossos percursos foram tão iguais, medos, inseguranças e a necessidade de um carinho, de um abraço sentido, de um simples toque que nos aquece a alma, de um sorriso que nos leva a outras vidas e assim transpomos o nosso próprio “EU”.
Meu pai lembras-te quando brincavas comigo?
Como riamos meu Deus, riamos a bom rir, com uma felicidade estampada no rosto, eu e tu meu pai, o que hoje a vida nos afastou, noutros tempos uniu as nossas vidas, porque eu e tu meu pai deixamos para trás o que hoje já não conta, o que hoje deixou de fazer sentido.
Meu pai foste o meu elo com a vida, deste-me os primeiros sorrisos e tiraste-me o meu primeiro riso.
Naquela madrugada serena onde eu e tu olhávamos as estrelas lembraste, meu pai?
O que vimos? Estrelas? Não. Deixamos de ver tudo o que era para nós, porque veio uma nuvem e cobriu os nossos horizontes, tapando a vida edificada em nossos corações – porque meu pai?
Deixaste que os meus sonhos de menina caíssem na terra lamacenta da vida, deixaste de viver para eu crescer, mas meu pai eu só queria amar, brincar.
Quiseste que eu crescesse depressa, assim podias moldar os meus sonhos de menina, mas meu pai tiraste-me o sorriso - Deixei de sorrir, porque tu querias preparar um mundo só para mim.
O tempo esse corria tão devagar, que cada sorriso contido não deixava correr o ar da vida que eu tanto ansiava.
Meu pai ainda hoje sinto que na penumbra do meu quarto, o teu sonho não era o meu, que a vida que tu querias não era aquela que eu pensava.
Meu pai, não tive vida, só sonhos ficados ao acaso, que caíram e destruíram os sonhos almejados nos vales daquilo a que tu chamavas crescer.
Meu querido pai a tua vida não foi fácil, na tua experiência de criança, tu tiveste que crescer sozinho – eu sei, mas meu pai – tens tanto de mim que sendo tu, não deixaste florir o meu coração.
Aquela menina de cabelos aos cachos, lembras? Parecia uma “molatinha”, lembraste pai?
Tanto orgulho tu sentias de mim, passeávamos de mãos dadas, o meu cabelo oscilava como uma mola, o caracol do meu cabelo negro subia e descia, vibrava com a segurança que me davas. Mas, sendo eu criança serena com vontade de viver, de sorrir de agarrar a vida, não sabendo bem porquê o mundo ruiu no dia que me mostraste que eu tinha que crescer sem meninos, com brincadeiras escondidas atrás da saia da avó.
A avó encobria com a sua saia preta as minhas lágrimas de menina com medo.
A tristeza estampada no meu rosto, que o meu coração teimava em não perceber.
Quando me disseste com o rosto fechado “muito riso pouco siso”, já era eu uma adolescente a espigar tristeza.
Tanta vontade de rir de correr, molhar os pés nas pocinhas criadas pelas gotas envergonhadas da chuva e fugindo do teu rosto fechado e à “sucapa” eu saltava naquela mesma poça que o céu tinha colocado para mim.
“Não vi mãe” – dizia eu sorrindo para Deus que era o meu cúmplice nas mentiras que eu teimava em inventar para assim brincar.
Tendo vivido no seio de uma família onde o medo pairava no ar, era tudo tão normal.
A minha avó tinha medo do meu avô, avô que a minha mãe receava, porque a vida duvidava que ela fosse aceite, o meu pai com medo do pai, a minha mãe com medo do meu pai, até com medo das minhas alegrias de criança, das minhas inseguranças de adolescente que podiam incomodar o meu avô, o meu pai.
E eis que tu minha querida apareceste leve e insegura, entre a vida e a morte, decidiste ficar, tu querias mesmo sendo quem és, sendo como és, tinhas decidido mudar aquilo que tu acreditavas poder ser mudado.
Naquele dia de sol alegre forte ... tu eras a alegria daquela casa.
Nasceste de 8 meses, mas com a força e uma percebe rança que só tu.
Quando chegaste a casa de cabelo loiro, franzina, não sei o que pensei, mas aceitei-te e pensei, agora sim vou brincar, tenho uma irmã para dividir as minhas poucas bonecas, os meus contos, agora sim juntas podemos juntar sorrisos e na vergonha daquilo que nós chamamos desgosto, existe vida, vida da mais pura.
Tu estavas ali deitada, sorrindo e sempre deitada.
Os nossos pais fizeram tudo o que sabiam, o melhor que pudiam para tu andares, porque o sorriso, esse minha querida estava sempre estampado no teu rosto. A força era visível quando gritavas, as pernas os braços e até o teu olhar gesticulavam alegria, vontade de ficar.
O pai trabalhava incansavelmente, com as suas dores de cabeça e sempre com o rosto coberto com uma nevoa.
Olhava o prato da sopa a horas tardias, com o rosto crispado de dúvidas, sozinho...sentia-te tão só meu pai! Mas eu queria brincar...mas não podia, porque te doía a cabeça e não tinha a tua mão porque estavas a trabalhar!
A mãe preocupada com a minha irmã completamente indefesa para o mundo... e eu queria brincar, correr pelos campos, tirar os chinelos, sentir a vida a fluir nas veias.
Mas neste mundo de vida incerta, a única certeza que tinha era o riso escondido estampado na sombra do meu quarto, que nem meu era - era do meu avô.
Sempre vivemos com os meus avós, eu tinha o espaço do quarto onde a minha privacidade era invadida quando o meu avô achava que o meu sorriso incomodava.
Tinha de meu - um quarto de brincar com uma caminha, duas mesinhas e um armário, e a boneca pequena e frágil que dormitava sem sorriso naquela caminha vestida de cor de rosa com os meus sonhos de criança.
Gostava de estar ali e inventar a felicidade no rosto daquela boneca, porque ela sorrindo eu sorria e se ela falasse comigo, Oh meu Deus – era o meu sonho, porque ninguém falava comigo, ninguém escutava as incertezas do meu desabrochar, só “Alice”, a minha boneca.
Eu e Alice escondidas no nosso mundo íamos descobrindo as nossas pequenas alegrias num mundo nosso de tristeza.
Porque só nos tínhamos a nós, e sedenta de amor eu cozinhava para ela, naquelas panelas que o Pai Natal deixou um dia no meu sapatinho.
Eu cozinho algo delicioso para Alice.
Quando ninguém estava por perto o “Nestum” da minha irmã era o deleite de um pequeno manjar:“Nestum” com açúcar para mim e para Alice – ela silenciosa culpava-me por estar a tirar aquele alimento que era só da minha irmã eu – deliciava-me com o sabor doce e angustiante, com a culpa da mentira.
Certo dia tendo cozinhado a nossa refeição preferida, sempre a mesma – olhei Alice e ela estava mais triste do que o costume – “O que foi Alice?” - perguntei eu.
Alice falava comigo pelo olhar - “Estás a crescer, vais esquecer-te de mim, vais ter outras meninas para brincar e até vais esquecer o meu nome” – DUVIDEI. – como posso esquecer-te?
A minha companheira de incerteza, de silêncio, de rumo sem resposta - “Não, nem penses vais ficar sempre comigo!”
Não foi assim, a escola chegou e com ela, o meu mundo ruía, não tinha Alice e não sabia brincar.
Quando amanheceu, eu queria esconder aquela ansiedade, mas não consegui, queria enfrentar aquele novo mundo, mas não consegui.
A escola era grande, corredores largos – mas escura, as empregadas andavam de bata aos quadradinhos, a minha professora era a D. Lurdes, meiga, calma e compreensiva, as minhas colegas muito agitadas, lembro bem, riam muito, brincavam ao apanha e ao esconde, eu ? - via ,mas ...segurava aquele pão com manteiga.
Quando chegava a casa corria contar a Alice as minhas brincadeiras, os jogos que tinha aprendido, as letras que soletrava -Alice ouvia, não respondia, mas eu sentia que ela estava triste, por não ir comigo, assim um dia escondi Alice na pasta e fui feliz, não me sentia sozinha.
Alice passou a ser a minha companheira de carteira, ela escondida eu confiante....
Maria